Leitor, para entender a história é preciso antes de mais nada que eu lhe passe algumas instruções para o melhor aprofundamento e percepção da experiência do texto: Primeiramente esqueça as cores. Sim, esqueça tudo o que há de colorido no mundo, substituindo pela cor cinza semelhante ao preto e branco das antigas películas, porém é mais cinza, tal como o céu num dia nublado para chover.
Isto pode lhe parecer estranho, mas é assim mesmo que a história se sucede, num ambiente sem o menor resquício de cores, ou emoções. Esqueça as emoções, porque aqui elas serão mais mímicas que vivas. Sem cores, sem vida, sem nada. Um mundo aparentemente desprovido de beleza e de fatos e vida, porém a vida existe e os fatos também. A atmosfera é densa, pesada e silenciosa. Está ficando claro? Espero que sim... sem cores, sem emoções (como as vemos no dia-a-dia), somente silêncio e um clima muito pesado, quase depressivo.
É neste cenário que encontraremos Célio, nosso personagem. Abriu os olhos; acabara de nascer. Fora recebido pelas mãos do médico e ali estavam ainda o pai e dois enfermeiros ajudantes. Ao lado de fora da sala de cirurgia onde o parto foi realizado o esperava a irmã mais velha. Ouviu-se um choro de bebê. As pessoas não tinham cores. O mundo não tinha cores. O som era inexistente. O choro era a única coisa audível naquele momento por todas as alas do hospital. Mais parecia um lamento que choro de criança. O mundo era cinza e mudo.
Ao ser finalmente tido como nascido, o pai abraçou os responsáveis pela realização do parto, porém sem um fio de voz, porque neste mundo além das cores, os sons não eram fatores comuns como em nossa realidade. Todavia o pai estava feliz bem como sua mãe, que sorria satisfeita e orgulhosa ainda no leito. O parto foi normal e saiu melhor que o esperado. Célio por sua vez chorava e não era pouco.
Agora está com três anos de idade. O mundo é totalmente, invariavelmente cinza e mudo. O único barulho que se ouve são os "toc-tocs" dos sapatos no chão madeirado e os "tic-tacs" de um relógio carrilhão. A casa é grande, mas apesar de preenchida parece vazia. Célio brinca só; a irmã está no colegial, o pai trabalhando em seu escritório de advocacia, a mãe está na cozinha preparando o almoço. Não há cores, nem música, nem sons para preencher este cenário. Célio não se importa de brincar só. Pega um carrinho, depois outro e fica empurrando-os para frente e para trás. Pelo movimento dos lábios ele poderia estar tentando imitar o ronco dos motores, entretanto não há sons em cena. A mãe não lhe chama pelo nome, porque não há voz neste universo. O filho não faz barulho de criança porque o mundo é silencioso. Se porventura algo de bom há nisto, é que quando os pais se pegam a brigar, Célio não os ouve, não se atormenta com a histeria nem com os palavreados, nem com as ameaças, nem nada.
O mundo é desprovido de cor e sons, já disse não sei quantas vezes, mas vá lá; dizer o dobro ou triplo disso ainda não seriam suficientes para a imersão nesta atmosfera densa. O fato é que neste mundo cinza, apesar da vida aparentemente retilínea das pessoas, Célio não se importava. A única coisa que o fazia sentir-se alheio era a falta destas cores. Célio nasceu no mundo cinza, porém tinha algo em seu íntimo que o dizia que algo estava faltando..., mas o que era? Nunca viu cor alguma, entretanto sentia saudade delas.
Está agora com dez anos. No caminho para a escola, milhares de pessoas cruzam pelas ruas apressadamente e de maneira egoísta, quase mecanizadas. Ninguém fala nada, nem traz coisa alguma no olhar, apenas caminham por entre as ruas como um gigantesco tráfego de formigas. Célio está no meio da multidão. Mochila nas costas e uma lancheira na mão. Seu lanche será duas maçãs; duas belas e suculentas maçãs cinzas. Está na aula. A professora aponta para o quadro negro (que é cinza) com um resto de giz. Não há na sala nem a voz da professora, muito menos da criançada. Se ela vira-se para o quadro, alguns peraltas lançam bolinhas de papel nos demais... só que sem algazarra. Sem um fio de voz. Todos estão adaptados ao mundo, exceto Célio que sente falta de algo que não sabe o que é.
Começa a namorar aos 18 anos, e podemos vê-lo cantando uma música para uma jovem, enquanto toca um violão. Não há voz em sua canção, nem melodia alguma se ouve de seu instrumento. Os olhos da moça parecem estar apaixonados. Lindos olhos sem cor! Então deixando-a em casa, volta tranquilamente enquanto liga o rádio de seu carro numa estação muda. O semáforo cinza coordena o trânsito mecanizado. O ronco dos motores é surdo e a poluição é cinza escura.
Chega pontualmente ao trabalho. Está numa gráfica de jornal impresso. O único som ambiente é o das máquinas. Célio é pressionado a dar conta de passar um tanto para o papel. Não gosta disso. O chefe não gosta que ele não gosta disso. Célio não gosta que o chefe não gosta do fato de ele não gostar disso. Os colegas agem indiferentes a tudo. Dia após dia, nesta sinfonia melancólica, segue tocando sua vida. Isto para ele é maçante. Os anos vão passando lentamente como séculos. Célio se desgasta como se realmente esta fosse a proporção.
Quando raramente tirava um tempo para si, ia à praia assistir ao pôr-do-sol incolor, diante de um mar silencioso e instável. Só voltava para casa quando o luar acinzentado aparecia ao escuro céu. Às vezes fitava a imensidão do mar, e a imensidão do céu, e a imensidão do universo. Imaginava o que poderia existir do outro lado, mas a vida continuava e ele não podia parar nisso por muito tempo, então entrava em seu carro cinza e silenciosamente voltava para casa.
Tudo na vida possui uma razão de ser. Célio mantém sua mal fadada rotina. É final de semana. O céu está nublado. Não chove. Tudo está cinza. Tudo está mudo. De repente, uma sirene sem barulho e quando já não esperava mais nada da vida, passa uma borboleta à sua frente. Esta borboleta é diferente das demais. Não é cinza! É verde! - Célio então vai seguindo a borboleta pelas ruas da cidade, sem saber para onde ela o estava levando. Ninguém mais havia reparado na cor daquela linda borboleta. Nem mesmo Célio imaginava que um dia iria encontrar uma, mesmo carregando em seu íntimo que elas existiam e agora a confirmação estava bem diante de seus olhos!
A borboleta era graciosa, séria, sabia o que estava fazendo. Guiava-o por entre o mundo cinza por caminhos que ele ainda desconhecia. Até que finalmente após algumas horas de caminhada, ultrapassam o limite dos mundos e ele vê-se num universo novo, colorido, cheio de vida, com sons de cachoeira, canto dos pássaros, música instrumental, cheiro de natureza e sabores que ainda não havia provado.
Enquanto Célio adentrava o novo universo, encantado com os raios de sol e com o barulho que lhes fazia o vento uivando por entre as orelhas, em casa o universo incolor continuava entre os seus. Alguém prestava-lhe uma homenagem, mas não havia voz. Uma orquestra fúnebre parecia tocar uma melodia inaudível e no choro dos saudosos despediam-se em um adeus mudo e sincero. Talvez existisse um pouco de emoção nisso; a terra o encobria, e ele descobria o universo.